quinta-feira, 10 de março de 2016

Sobre a segurança do uso da ayahuasca


 
LF TófoliCurtiu
23 h · 
Uma de minhas linhas de pesquisas é sobre a ayahuasca, o “chá do Santo Daime”. Estamos construindo um grande grupo interdisciplinar para investigar o assunto naUNICAMP e fomos aprovados em um financiamento do Ministério da Justiça para investigar o potencial desse chá no tratamento de alcoolismo.
Os tristes acontecimentos que levaram à morte de Rian Brito, filho de Nizo Neto e Brita Brazil e neto de Chico Anysio, reacenderam a discussão sobre os riscos associados ao uso desta substância psicoativa. Assim, achei que seria importante apresentar alguns dados e reflexões sobre alguns aspectos relacionados ao chá.
O primeiro ponto, e o mais importante, é que não se pode minimizar a dor de uma mãe ou de um pai que perde seu filho. Eu me solidarizo com o os sentimentos dos pais de Rian, e compreendo perfeitamente as manifestações deles a partir da triste história que vivenciaram. Ao mesmo tempo, não tenho condições de opinar sobre o caso em si somente com informações de imprensa, então vou tentar resumir algumas informações importantes sobre a ayahuasca que, a meu ver, precisam ser ponderadas neste momento.
No Brasil, o uso de ayahuasca para fins religiosos e rituais, além do científico, é autorizado. Em uma recente pesquisa online inédita com 638 pessoas que beberam o chá, Eduardo Schenberg, Dartiu Xavier da Silveira e eu evidenciamos que a maioria esmagadora (94%) o fez em contexto ritual.
Na resolução do Conselho Nacional de Políticas de Drogas em que o uso ritual é autorizado fica explícito que a comercialização do chá é vedada. A resolução também explicita que pessoas portadoras de transtornos mentais graves não devem beber ayahuasca, e que as religiões ayahuasqueira devem entrevistar previamente os interessados para evitar que isso aconteça.
Tomado esse cuidado, a chance de um evento grave associado ao uso do chá é raro, comparado ao seu uso relativamente frequente. A partir de dados que estudamos na União do Vegetal, religião ayahuasqueira que registra as ocorrências de saúde mental que acontecem em seu âmbito, pudemos verificar que o risco de incidência de um surto psicótico é semelhante ao que é esperado para pessoas da população geral (Lima & Tófoli, 2011). No entanto, é preciso frisar que a UDV (assim como outros grupos ayahuasqueiros responsáveis) faz uma triagem para evitar que pessoas que já tenham tido sintomas psicóticos bebam hoasca, que é como a UDV denomina a ayahuasca.
Outro ponto que deve ser levado em consideração é que a ayahuasca apresenta um potencial terapêutico que vem sido mais recentemente estudado pela ciência biomédica (Bogenschutz e Johnson, 2016), apesar de já ser um achado antigo das ciências sociais (Labate e Araújo, 2004). Mais detalhes sobre este assunto podem ser encontrados no livro 'The Therapeutic Use of Ayahuasca' (Labate e Cavnar, 2014).
Há no momento estudos em diversas fases de andamento para investigar o potencial terapêutico da ayahuasca em pelo menos três transtornos psiquiátricos: depressão, uso problemático de álcool e transtorno do estresse pós-traumático – e eu estou envolvido nos dois primeiros deles. Esperamos em breve poder trazer mais informações sobre isso.
São extremamente frequentes os relatos de pessoas que começaram a frequentar religiões ayahuasqueiras e se livraram do uso problemático de drogas. Também já há evidências de laboratório, com animais, de um efeito terapêutico da ayahuasca para o abuso de álcool (Oliveira-Lima et al, 2015).
Uma das reflexões importantes sobre o episódio é reforçarmos o cuidado com as pessoas que bebem o chá pela primeira vez. Estas devem se seguidas de perto, e na ocasião infrequente de apresentarem sintomas psicóticos como delírios (ideias estranhas que só a pessoa acredita) ou alucinações (ouvir ou ver coisas que outras pessoas não percebem) não devem voltar a beber o chá sem, no mínimo, consultar um profissional de saúde mental, de preferência um psiquiatra.
Eventos desse tipo são bastante raros, e devem ser avaliados diante da liberdade religiosa e dos potenciais benefícios, mas isso não significa que os grupos ayahuasqueiros não devam estar preparados para estas eventualidades.
Assim, não estamos falando somente de uma substância psicodélica com riscos – que sim, existem, como para qualquer substância psicoativa como o álcool ou remédios antidepressivos ou sedativos – mas também de benefícios. Para milhares de pessoas no Brasil, membros de religiões e grupos ayahuasqueiros, a ayahuasca é compreendida como um instrumento de crescimento pessoal e um fato de saúde mental.
Qualquer decisão política sobre o chá não pode ignorar este grande contingente de pessoas (Anderson et al., 2012). Ao mesmo tempo, qualquer discussão que aumente a chance de que as pessoas recebam o chá de mãos responsáveis e cuidadosas é também certamente bem-vinda.
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Referências bibliográficas
ANDERSON, B. T.; LABATE, B. C.; MEYER, M.; et al. Statement on ayahuasca. The International journal on drug policy, v. 23, n. 3, p. 173–5, 2012.
BOGENSCHUTZ, M. P.; JOHNSON, M. W. Classic hallucinogens in the treatment of addictions. Progress in Neuro-Psychopharmacology and Biological Psychiatry, v. 64, p. 250–258, 2016.
LABATE, B. C.; ARAÚJO, W. S. O uso ritual da ayahuasca. Campinas: Mercado de Letras, 2004.
LABATE, B. C.; CAVNAR, C. The therapeutic use of ayahuasca. Heidelberg, Springer Verlag, 2014.
LIMA, F. A. S.; TÓFOLI, L. F. An Epidemiological surveillance System by the UDV: Mental health recommendations concerning the religious use of Hoasca. In: B. C. Labate; H. Jungaberle (Eds.); The Internationalization of Ayahuasca. p.185–189, 2011. Zurich: LIT Verlag.
OLIVEIRA-LIMA, A. J.; SANTOS, R.; HOLLAIS, A. W.; et al. Effects of ayahuasca on the development of ethanol-induced behavioral sensitization and on a post-sensitization treatment in mice. Physiology and Behavior, v. 142, p. 28–36, 2015.




 

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