terça-feira, 29 de julho de 2014

A Ayahuasca entre a terra e o céu


A Ayahuasca, link amazônico entre a terra e o céu



Fátima Almeida*

Eduardo Ribeiro, maranhense, foi o primeiro governador afrodescendente do Brasil, no período 1892 a 1896. Filho de uma escrava, ele estudou na Academia Militar do Rio Janeiro, tornando-se oficial, vindo a ser governador do Amazonas durante a presidência de Floriano Peixoto. Envolveu-se com o positivismo que grassava em meio à oficialidade do Rio de Janeiro, mas foi obrigado a assinar um documento no qual declarava não ter nenhum “defeito de origem”, pela ascendência negra. Sua fotografia oficial foi retocada, europeizada, para disfarçar a “mulatez”. Em Manaus, construiu o Teatro Amazonas e transformou a cidade na Paris dos Trópicos.

Afora o fato de ter sido um urbanista, Eduardo Ribeiro abriu uma corrente migratória do Maranhão para a Amazônia, quando muitos negras vieram para a região, trabalhar nas obras da cidade, nos campos de cultivo e também nos seringais. Nessa leva, também vieram os traços da herança cultural maranhense, em especial a dança e as toadas do boi, hoje um festival na ilha de Parintins, significativo para o turismo daquele Estado.

Aberta a rota Maranhão-Amazonas, um jovem de dezessete anos, com quase dois metros de altura, migrou até as fronteiras com o Peru e a Bolívia, nas primeiras décadas do século seguinte. Ele, que nasceu em São Vicente de Fèrrer, em dezembro de 1892 e fixou-se no então emergente Território Federal do Acre, formou um Império, o chamado Império de Juramidam, atualmente com chancelarias em diversos países, tais como Grécia, Holanda, além de se estender por diversos Estados Brasileiros, tais como Minas, São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal, etc. Estamos falando da autodenominação do que se constituiu Santo Daime.

O jovem Raimundo Irineu Serra trabalhando como extrator de seringa, para fabricação de borracha, matéria-prima para os pneumáticos, em contato com indígenas peruanos, experimentou o chá de uma liana ou cipó, junto com folhas de um arbusto da família das Rubeáceas, chá esse, comumente utilizado entre os indígenas da Amazônia peruana e colombiana para efeitos de medicina oculta e práticas xamanísticas.

Sob o efeito do chá, os indígenas da Colômbia podiam ver, por exemplo, se alguém houvera colocado “sal” em seu caminho, o que quer dizer, ter feito feitiçaria para atrapalhar-lhes os planos. Afora outros fenômenos de vidência, visões do futuro, visões de outro mundo, , às quais eles denominam de “pinta”. Talvez pelo fato de ter usado o chá, a ayahuasca, com bolivianos e peruanos, Irineu Serra chamou aquelas visões de “mirações”, pois para essas populações “ver” é “mirar”. 

De forma inesperada Irineu passou a ver, ouvir e conversar com uma deusa celestial que o teria acompanhado desde a viagem do Maranhão, a quem ele chamou de Clara. Sendo que a casa da referida deusa ficava localizada na Lua. Ele não sabia cantar e nunca tinha pensado nisso, em vir a ser cantor nem compositor. Mas recebeu uma ordem de Clara: “abra a boca e cante”. E assim ele o fez, quando recebeu seu primeiro hino de um conjunto de 132 hinos conhecido por “O Cruzeiro” formado ao longo de quatro décadas, mais ou menos: “Deus te Salve, ó Lua Branca, da cor tão prateada, tu sois minha protetora, deDeus tu sois estimada. Oh! Mãe Divina, do coração, nas alturas onde estás, minha mãe, no Céu, dai-meo perdão....” Esse primeiro hino, intitulado “Lua Branca”, é uma valsa de  abertura dos chamados trabalhos ou hinários que compõem a liturgia daimista.


 

Com o passar dos anos Irineu Serra foi estruturando a doutrina, organizando sua ritualística, indumentárias ou fardamentos, acessórios, instrumentos musicais, na companhia de seus seguidores. O fato de ser bem audível o apelo “dai-me” quando são entoados os cânticos apelativos ou de louvor, fez com que os passantes identificassem o grupo como “o povo do daime”. E assim ficou o nome daime para denominar o próprio chá e a manifestação religiosa que é exclusiva do Acre, não se verificando nada semelhante em nenhuma outra parte da Amazônia.

O Daime tem sido objeto de pesquisas desde o final da década de setenta, existindo hoje provavelmente centenas, talvez milhares de monografias, dissertações de mestrado e teses sobre o tema, desde o aspecto farmacológico ao antropológico e histórico cultural. É conhecido em toda a Amazônia Legal, com diversos nomes como Yagé, uásca, ayauhasca, cipó, cipó do morto-vivo, entre outros. A sua origem, para os indígenas Kaxinauá do Acre, deveu-se a uma aprendizagem de um dos seus antepassados junto às enormes cobras que moram nos poços existentes nos leitos dos rios em plena selva. Para os indígenas do Putumayo, na Colômbia, o cipó se originou de um cabelo de Deus que foi atirado à terra num gesto de irritação, segundo o antropólogo norte-americano Michel Taussig.


No Daime, o bailado - formação típica pela qual,  homens e mulheres, casados, casadas, solteiros e virgens, ficam dispostos num salão, enfileirados, fardados, formando um quadrilátero pendular de acordo com os passos de dança, para os lados, balançando cada um, um maracá, ao ritmo do hino que pode ser uma valsa, uma polca ou uma mazurca - lembra muito as danças folclóricas maranhenses. Além de que, alguns personagens que são invocados, hino após hino, tais como Princesa Soloína, Equior, Corre Beirada e outros parecem ser oriundos da encantaria maranhense, a par com os louvores a Nossa Senhora da Conceição e Jesus Cristo.O que denota um sincretismo religioso com traços do catolicismo popular, da pajelança indígena e do Candomblé de Eguns, este originário do Maranhão.


Irineu Serra atribuiu a esse fato a constituição de um Império, o de Juramidam, de modo que os adeptos, após a ingestão do chá adentram, em estado de miração, em um palácio suntuoso. Existem muitos elementos esotéricos, tais como a visão de uma enorme serpente. Irineu Serra, que não sabia escrever e tinha uma secretária para fazer anotações, Dona Percília, fez parte do Circulo Esotérico da Comunhão do Pensamento, durante alguns anos.

O grupo inicial sofreu perseguições e foi alvo de maledicências na pequena cidade de Rio Branco, capital do Acre. Mas, Irineu Serra conseguiu se estabelecer e consolidar sua doutrina, ao mesmo tempo, mantendo relações com homens públicos na base da cordialidade, respeito mútuo e até mesmo contribuindo com votos em número significativo para as eleições da época.

Após seu falecimento, em sete de julho de 1971, ocorreu o primeiro cisma, surgindo uma igreja nova, dissidente, sob a liderança de Sebastião Mota de Melo, responsável pela difusão do Daime em todo o mundo. Ainda em vida, Irineu Serra foi mentor espiritual de seu conterrâneo, Daniel Pereira de Matos,maranhense , seguiu caminho próprio fundando nova igreja de Daime com disposições distintas, desde doutrina, rituais, fardamentos, configurando-se como a “linha do mar” ao passo que a de Irineu Serra seria a “linha da terra ou da floresta”.


[Daniel Pereira de Matos]

 Existe ainda um terceiro modo de usar o chá, denominado União do Vegetal, fundado pelo baiano José Gabriel da Costa - nascido numa localidade de nome Coração de Maria, na Bahia, em 10 de fevereiro  de 1922 - nas florestas do território de Rondônia em fronteira com a Bolívia, no início da década de 60, atualmente com diversos grupos disseminados por vários Estados brasileiros e até em países como os Estados Unidos. Sendo que a UDV não tem aportes com o catolicismo popular, como ocorre no Daime, remontando à mitologia originária da civilização incaica e ao mesmo tempo preconizando os princípios do Evangelho.


Os três, Mestre Irineu, Mestre Daniel e Mestre Gabriel formam a tríade sagrada da ayahuasca que emergiu unicamente em região da Amazônia brasileira, com extensões pelo mundo inteiro, com milhares de seguidores, sites, publicações, documentários e toda ordem de suportes de memória e veiculação de informações, interpretações e divulgação das respectivas doutrinas. A questão dos seus sucessores tem colocado o problema dos cismas e,  o surgimento de novas igrejas, por toda parte, com as mais variadas orientações.

 

Fátima Almeida*éacreana, historiadora,escreveu dissertação de Mestrado sobre o Daime,em 2002 - Santo Daime: a colônia cinco mil e o movimento da contra-cultura.