Anfíbio da espécie "Phyllomedusa bicolor", cuja secreção é usada por índios para dar sorte e curar doenças
A
chamada "vacina de sapo" usada por povos indígenas da Amazônia está na
mira da Polícia Federal. A secreção extraída de um anfíbio local chamado
de "kambô" ou "kampô" (Phyllomedusa bicolor) tem sido enviada para várias cidades do Brasil e do exterior - ela é vendida como suposta cura para as mais diversas doenças.
Por
falta de comprovação científica dos supostos benefícios à saúde, desde
2004, uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
proíbe o uso, o comércio, a distribuição e a propaganda do kambô como
medicamento fora das aldeias.
De
olho no crescimento do comércio e exportação ilegal da secreção do sapo
amazônico, a Polícia Federal (PF) desenvolveu uma nova tecnologia que
pretende coibir a biopirataria da substância. Segundo informou a PF, por
meio de sua assessoria, a caracterização do crime esbarra na
dificuldade de identificação imediata do produto. "A secreção é uma
gosma amarela, muitas vezes reservada em suportes de madeira, tubos ou
lenços, e de difícil análise química por se tratar de material biológico
complexo".
A
técnica para identificação da "vacina de sapo" utiliza um aparelho
chamado Maldi-TOF. De acordo com a PF, por ser seletiva e rápida, atende
com eficiência e eficácia a atual demanda. "O tempo gasto entre a
preparação da amostra e a análise dos resultados é de aproximadamente 60
minutos". O projeto da Polícia Federal no Acre, planejado e executado
pelo perito criminal federal Cezar Silvino Gomes, foi premiado no último
Encontro Nacional de Química Forense, promovido pela USP (Universidade
de São Paulo), em 2012.
Medicinas da floresta
Oriunda
da medicina tradicional indígena amazônica, a "vacina de sapo" é
amplamente utilizada e conhecida entre as comunidades da região. Costuma
ser aplicada pelos curandeiros da aldeia nos braços (em homens), ou nas
pernas (em mulheres), para ajudar na caça e curar ‘panema’, uma espécie
de depressão do índio.
As
reações mais comuns de quem recebe a substância são mal-estar e náusea.
Em seguida, os usuários dizem ter uma sensação de bem-estar e energia.
"Usamos para falta de ânimo, para prevenir doenças e afastar o mal e o
azar", explica o cacique Ni’i katukina, do Acre, que já esteve em São
Paulo difundindo a "vacina".
COMO É A APLICAÇÃO DA 'VACINA'
- Para a aplicação da 'vacina de sapo', são feitos, com um pedaço de madeira quente, entre sete e nove orifícios no braço (no caso de homens; nas mulheres, a aplicação é na perna). A secreção do sapo amazônico é, então, inserida embaixo da pele com um canivete. Vômitos, diarreia, náusea e mal-estar são sintomas comuns. O efeito começa cerca de 30 segundos depois da aplicação e dura aproximadamente 20 minutos. Segundo a tradição indígena, o local de aplicação está relacionado às atividades da pessoa. "Os homens precisam de força nos braços para a caça, e as mulheres necessitam de pernas fortes para conseguir caminhar carregando cestos de macaxeira e
os filhos", explica o cacique Ni’i katukina
Vale
destacar que o uso das chamadas "medicinas da floresta" requer
cuidados. Há uma diferença entre os remédios ditos naturais e os
fitoterápicos. Estes últimos têm efeito comprovado, autorização da
Anvisa e registro no Ministério da Saúde. No caso do kambô, apesar da
proibição, seu uso ocorre livremente nos centros urbanos. Em geral, está
inserido no circuito esotérico e das terapias alternativas, em alguns
casos associados a outras práticas dos índios amazônicos, como a
ayahuasca, substância psicoativa usada no culto religioso do santo
daime.
Coquetel de substâncias
Em 2008, um homem de 52 anos morreu após
uma aplicação do kambô no interior de São Paulo. "Pode ser perigoso",
afirma o biólogo e pesquisador Denizar Missawa, da Universidade
Guarulhos e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos
(Neip).
Embora
seja contrário à proibição, o biólogo alerta que a substância tem uma
ação no sistema cardiovascular que merece atenção. "É um coquetel de
substâncias bioativas; se isolarmos cada uma delas, vamos encontrar
medicamentos que agem em diferentes sistemas fisiológicos". Para
ilustrar, ele usa o exemplo de alguém que está com dor de cabeça e toma
uma farmácia inteira. "Com certeza, você terá tomado um medicamento para
dor de cabeça, mas também tomou outros que servem para outras doenças, o
que não é saudável", compara.
O
pesquisador lembra, ainda, que a forma como as populações indígenas
fazem uso do kambô é bem diferente do que tem sido propagado nas grandes
cidades. "As aplicações são envoltas em cuidados, como dietas
alimentares e comportamentais", observa Missawa.
Projeto kambô
Entre
os catuquinas, um grupo indígena da Amazônia, o uso da "vacina de sapo"
pelo homem branco também gera polêmica. Antes da resolução da Anvisa,
lideranças contrárias à disseminação indiscriminada do kambô já haviam
encaminhado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) uma solicitação de
registro de seus conhecimentos tradicionais e uma denúncia de
biopirataria. O pedido mobilizou governo e pesquisadores e gerou o
Projeto Kambô, que desencadeou um processo de regulamentação do acesso
ao patrimônio genético.
Atualmente,
se alguma substância orgânica de interesse farmacológico associada a
conhecimentos tradicionais for descoberta, deve haver divisão de lucros
da patente entre laboratórios e comunidades envolvidas. "O acesso ficou
extremamente restrito e burocrático; ficou proibido o transporte sem as
devidas alterações", diz Missawa.
O
biólogo conta que, em 2003, esteve à frente de uma pesquisa pioneira
junto aos índios caxinauás – que também fazem uso do kambô. O projeto,
entretanto, teve que ser interrompido. "Em 2004, viramos criminosos por
causa da proibição do porte de material genético", lamenta. Ele conta
que a equipe teve de terminar o trabalho quase de forma ilegal, embora o
foco fosse saber como a vacina age no organismo, e não o patenteamento.
"Acredito que foi o primeiro estudo de caraterização fisiológica da
secreção, mas até trabalhos de natureza informativa foram proibidos e
não pude publicá-lo em nenhuma revista".
Tiro no pé
Para
o biólogo Missawa, em vez de restringir o acesso ao kambô, o Brasil
deve investir em pesquisa, afinal não é a toa que mais de duas dezenas
de pedidos de patente da substância já foram feitos por laboratórios
estrangeiros. "A substância presente na secreção do sapo que despertou
interesse são as dermaseptinas, peptídeos com capacidade antibiótica
intensa, eficaz contra inúmeros microorganismos, inclusive algumas
formas resistentes de bactérias".
HOMEM MORRE APÓS 'VACINA'
Em
2008, o comerciante Ademir Tavares, de 52 anos, morreu após ter
recebido a "vacina de sapo" em Pindamonhangaba, no interior de SP,
aplicada por um empresário. Tavares demorou muito para voltar do
banheiro, o que chamou a atenção dos presentes. Quando foram até o
banheiro, encontraram-no caído, de olhos abertos e sem respirar. Foi
socorrido, mas chegou morto ao hospital
Nesse
sentido, ele acredita que a proibição do kambô pode ser um tiro no pé,
pois mira na biopirataria, mas acerta na bioprospecção. ou seja, na
exploração legal de espécies de uma determinada região. "Ficou
extremamente difícil qualquer pesquisa acadêmica, mesmo sem o intuito de
bioprospecção".
O
biólogo, em parceria com os índios Huni Kui (Caxinauá), tentou durante
três anos autorização para outro estudo das características dos efeitos
imunológicos da secreção do sapo da Amazônia, através do Laboratório de
Imunoquímica do Instituto Butantan. Não obteve sucesso. "A burocracia é
imensa e demorada, trazendo o desinteresse por parte das instituições em
pesquisar o kambô, principalmente por ter o conhecimento tradicional
associado", conta.
"Deveríamos
pesquisar esta substância para transformá-la em medicamentos ou alertar
possíveis riscos a saúde. A proibição dificulta muito qualquer pesquisa
farmacológica, além de trazer transtorno para o índio que estiver
levando em sua bolsa a sua medicina tradicional", acrescenta.
Biopirataria
Um
fato reforça o argumento do biólogo quanto à ineficiência da proibição
do kambô com o objetivo de combater a biopirataria. Não é difícil
retirar legalmente material genético amazônico na Guiana Francesa. Quem
preferir pode comprar a secreção do sapo em sites peruanos. Muito mais
simples do que burlar a lei brasileira severa e burocrática. "Não
acredito que exista biopirataria no Brasil, o que tem é o tráfico",
afirma Missawa.
De
fato, centros alternativos nas grandes metrópoles promovem o tratamento
com a "vacina de sapo" cobrando, em média, 100 reais por aplicação.
"Uma paleta possibilita umas 100 aplicações, e considerando que para o
índio ou ribeirinho ela é retirada gratuitamente da natureza e
subtraindo-se a passagem de avião, ainda sobra um lucro considerável,
que às vezes é dividido entre o aplicador e a instituição que promoveu o
tratamento", detalha o pesquisador.
Também
é comum no interior do Acre, em Cruzeiro do Sul, Tarauacá e ao longo da
BR 364, encontrar pessoas vendendo uma paleta com a secreção do sapo
por um preço baixo. O "terapeuta alternativo" compra, transporta para a
metrópole e obtém o lucro total nas aplicações.
Não
é de se espantar, portanto, que a "vacina de sapo" já tenha chegado à
Europa e aos EUA, embora ainda de forma discreta. "Está relacionada ao
circuito da ayahuasca e das terapias alternativas, mas são basicamente
iniciativas individuais, não institucionalizadas", diz a antropóloga
Beatriz Labate, professora visitante do Programa de Política de Drogas
do Centro de Pesquisa e Ensino Econômico - Cide, em Aguascalientes, no
México.
http://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/redacao/2010/04/26/pesquisas-testam-potencial-beneficio-da-ayahuasca-contra-depressao-e-dependencia.htm
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